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A mostrar mensagens de maio, 2021
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  Percalços de uma vida Era apenas um rapazito de doze anos. Franzino, de olhos azuis penetrantes e cabelo negro. A escola já terminara há algum tempo. Seu pai tinha falecido quando ele era ainda pequenino, tinha poucas memórias dele, nem tão pouco da sua face se lembrava. Recordava vagamente alguns breves episódios e vivia das memórias que os irmãos mais velhos lhe transmitiam. Ficara a viver numa aldeola remota no meio da floresta com a mãe e os seus três irmãos.    A pobreza das famílias era flagrante naqueles anos cinquenta, o pós-guerra, fosse ela qual fosse, a mundial, a colonial, fazia com que a vida não fosse abastada, com que os empregos escasseassem, com que a necessidade de sobreviver fosse o lema de todos. Para as mulheres restava pouco mais do que um casamento que providenciasse algum conforto, para os homens a via da emigração, das colónias, ...  Soledade, a mãe de Manuel, era ainda jovem quando o primeiro marido, pai dos seus quatro filhos, faleceu. Ap...
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Nicolau      A chuva não parava de bater na janela e os olhos daquela criança entristeciam um pouco mais.       Era sufocante ter que permanecer fechado entre quatro paredes quando podia simplesmente calcorrear todos aqueles montes, chutar a bola até à altura da copa das árvores, arremessar pequenas pedras para os charcos de água que se acumularam pelos caminhos e saltar a pés juntos nessas poças...     Ah! O prazer de fazer saltar salpicos de lama para todo o lado, chegar a casa molhado dos pés à cabeça e poder tomar um banho quente. Curiosamente, a mãe não apreciava quando ele lhe aparecia naquela figura, nunca entendera muito bem porquê, afinal tinha duas máquinas de lavar (dizia ela que estava precavida para quando lhe avariasse uma) e tinha um belo estendal onde colocar a roupa a secar.      Ele sabia bem que, embora certas tarefas domésticas a aborrecessem, nunca se sentia triste quando tinha roupa para estender, era o mo...
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  Um dia      O dia amanhecia solarengo, embora fresco, e prometia um recomeço. Aqueles recomeços que sentimos em cada manhã, em cada despertar, em cada raio de sol que vislumbramos pela janela. Precisamente aqueles raios de luz que nos iluminam o rosto ainda adormecido, quando nos sentamos à mesa para tomar o pequeno-almoço.       Daí a pouco toda a engrenagem se iniciaria, a primeira viagem de carro, deixar o filho na escola, começar mais um dia de trabalho, mais um dia de projetos que voavam nas linhas de cada letra sonante que sairia do rádio naquela manhã. Assim, tudo aconteceu como em todas as outras manhãs em que tudo recomeça.      Olhava com um sorriso, escondido pela máscara, os rostos daqueles que se cruzavam comigo, o que pensariam, o que sentiriam, que vida construíam? Todas as incógnitas que nos assolam, que se encaixam para que o mundo gire e não pare, são pedaços de um todo que não perspetivamos a todo o momento. ...
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A gata Malhada      A gata Malhada estava metida novamente numa grande alhada!    Por esta altura, o leitor já deve estar a pensar que esta gata é um pequeno terror; tanto quer ser letrada, como está arreliada, como, em certos dias, está amuada pois não lhe deixam fazer o que ela quer! Pois bem, é assim mesmo o espírito aventureiro duma gata que não sabe estar parada e sossegada, exceto quando está cansada...    Naquela manhã, como sempre fazia, esticou as suas patas, alisou o pelo e deu uma patada num novelo. De seguida, foi sentar-se imponente, mas contente, junto à sua tigela amarela. Estava na hora da sua paparoca e todos sabiam que não se contentava com uma maçaroca, isso era comida de galinha! Passado um bom bocado, achou estranho que não aparecesse ninguém, nem a miúda, nem a mãe!       Ficou indignada pois ela já estava levantada e preparada, no entanto estava a ser completamente ignorada. Como era inteligente, e obviamente ...
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Mãe      O calor sentido daquele abraço deixavam-na esquecer as amarguras da vida. Na verdade, nunca pensara em ser mãe, achava mesmo que talvez não tivesse sido talhada para o papel. Quando alguém nasce, quem sabe o que o destino lhe reserva? Mas tudo aconteceu como devia.      Foi mãe pela primeira vez aos vinte e nove anos e, assim que pôs os olhos naquele pequeno ser rosado que lhe colocavam no peito, foi como se todo o universo fizesse sentido naquele rosto redondo. A ternura de o agarrar nos braços, o calor que sentia ao coloca-lo junto a si, a ansiedade de o ouvir chorar, da inexperiência, da necessidade de se afirmar, levaram-na a ter a certeza de que a sua vida tinha mudado.       Um sentido de proteção, de preocupação e de amor infinito fixaram-se dentro de si e a vida passou a ser dividida, a ser partilhada por aquele pequeno ser tão frágil.       A fragilidade tornou-se afirmação, conquista do mundo, de pe...
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Clara      Abriu um olho e, depois, o outro.       Na realidade não entendia muito bem o que se passava à sua volta: os sons, as cores, aquela sensação de frescura, de ser agitada, sacudida e de quase cair, aqueles afrontamentos e ao mesmo tempo aquela escuridão. Era muito jovem para conhecer a fundo tudo o que a rodeava, tinha que aprender, tinha que observar, tinha que tentar entender a mecânica de tudo o que acontecia em seu redor.       Foi exatamente assim que os dias e as noites se foram passando para aquela jovem flor que nascera e desabrochara para o mundo sem o conhecer, sem saber qual era o seu papel ali. Aos poucos, foi descobrindo. Perspicaz como era, depressa entendeu que os sons vinham dos pássaros, do assobiar do vento, do bater das asas, das pequenas discussões que os insetos geram entre si (pois é, apesar de pequenitos, são extremamente vivaços e muito senhores do seu nariz), do zumbido das abelhas que nunca param e...