Nicolau

    A chuva não parava de bater na janela e os olhos daquela criança entristeciam um pouco mais. 
    Era sufocante ter que permanecer fechado entre quatro paredes quando podia simplesmente calcorrear todos aqueles montes, chutar a bola até à altura da copa das árvores, arremessar pequenas pedras para os charcos de água que se acumularam pelos caminhos e saltar a pés juntos nessas poças...
   Ah! O prazer de fazer saltar salpicos de lama para todo o lado, chegar a casa molhado dos pés à cabeça e poder tomar um banho quente. Curiosamente, a mãe não apreciava quando ele lhe aparecia naquela figura, nunca entendera muito bem porquê, afinal tinha duas máquinas de lavar (dizia ela que estava precavida para quando lhe avariasse uma) e tinha um belo estendal onde colocar a roupa a secar.     Ele sabia bem que, embora certas tarefas domésticas a aborrecessem, nunca se sentia triste quando tinha roupa para estender, era o momento em que saia à porta de casa, ouvia os pássaros, sentia a brisa que lhe acariciava o rosto, se abstraia com o verde que emanava de toda aquela paisagem. As cadelas cheiravam-lhe os pés, roçavam a sua cabeça na expetativa de uma carícia e, assim que esta era dada, saiam felizes a correr pelo jardim. Era um regalo ver a vida a correr naqueles breves instantes. 
    Mas, naquele dia, Nicolau não podia sair de casa, estava “preso” pela chuva e supervisionado pela mãe; se a mãe não o tivesse proibido de sair (pois podia constipar-se, escorregar e magoar-se, enfim, todo um rol de pequenas desgraças passíveis de acontecerem) ele escapar-se-ia. Colocaria a sua máscara (aquela indumentária que se tornou obrigatória nestes tempos modernos), agarraria a sua mochila (com a bola dentro) e pegaria na sua bicicleta, partindo rumo à aventura. 

    Era sábado, as tarefas estavam cumpridas, a tarde já ia longa e a claridade do dia permitia que as aventuras se prolongassem por mais um pouco. Se ao menos pudesse sair...
    A mãe continuava de vigia, a chuva não dava sinal de abrandar; aliás o céu carregava-se de um cinzento cada vez mais misterioso. 
    Nicolau gostava de olhar o céu, gostava de imaginar as aventuras que lhe contavam os formatos estranhos das nuvens: umas pareciam barcos que vinham a navegar de longe, trazendo histórias de piratas, de monstros, de animais incríveis, outras pareciam castelos de algodão, outras paisagens lunares...no entanto, naquele dia, as nuvens estavam cerradas, pareciam-lhe fortes antigos, prisões de sonhos...  
    Daí a pouco, a chuva ofereceu as suas primeiras tréguas, pelo que a mãe resolveu dar um saltinho ao supermercado; como ela costumava dizer “todos têm o hábito de querer comer nesta casa” e a preocupação das refeições recaia sempre sobre ela. Assim, saiu.
    Nicolau continuou agarrado à janela a olhar o céu quando viu passar o seu grande amigo Vítor. Onde iria ele? Ter-se-ia escapado sem mais nem menos? Estava morto de curiosidade e de vontade de segui-lo. Em abono da verdade, não pensou assim tanto se deveria ficar em casa ou não, aliás a mãe demoraria certamente uma hora: entre ir e vir, escolher o que queria comprar, cruzar-se com algum conhecido...era sempre assim. Nicolau vestiu apressadamente o casaco, agarrou na bicicleta e lá foi ele, no encalço do seu amigo. Aquele ar húmido que trazia o cheiro da terra, aquela sensação de frescura, aquelas nuvens, que começavam a desanuviar, envolviam a alegria de Nicolau que se sentia feliz e livre.  
    Não tardou muito a alcançar o seu amigo que não ficou espantado de o ver. Assim que cruzaram o seu olhar de cumplicidade, retomaram as pedaladas e nem foi preciso partilharem os seus pensamentos, ambos sabiam bem aonde iam: à cascata da ribeira que passava a alguns quilómetros dali. Quando chovia era um espetáculo olhar para aquela queda de água que caia abruptamente num poço, ver os pingos que brilhavam no ar e ouvir a voz da ribeira que ria euforicamente. 
    As chuvas intensas que tinham caído naquele mês de maio tinham encharcado todo o caminho de terra até à cascata e não se conseguiam ver os buracos que deviam tentar evitar a todo o custo, pelo que a viagem não foi fácil e provocou estragos. Quando chegaram ao destino, os miúdos verificaram que o pneu traseiro da bicicleta do Nicolau se tinha furado. Não foi algo que os preocupou no imediato, aliás, naquele momento queriam explorar o lugar, apreciar a força da água na cascata, pelo que nem o passar do tempo, nem o pneu furado os demoveu das suas brincadeiras. 
    Quando finalmente se cansaram, a claridade do dia desaparecera, a noite começava a instalar-se e os chuviscos recomeçaram. Foi, nesse momento, que se aperceberam da fome, do frio que emanava das suas roupas molhadas e, principalmente, da distância que tinham de percorrer até chegarem a casa, tendo em conta que uma das bicicletas teria de ser levada à mão. 
    Foi, nessa altura, que pensaram na preocupação dos pais, e, também, no ralhete que teriam de enfrentar, mas não havia nada a fazer: caminhar e enfrentar a situação. No entanto, nem sempre os acontecimentos da vida se desenrolam como esperamos e, uma centena de metros mais à frente, Nicolau, que empurrava a sua bicicleta, caiu numa poça de água. Depressa se levantou para constatar que ficara ainda mais molhado e lhe doía o pé quando o colocava no chão. Os dois amigos estavam agora mais apreensivos: a escuridão naquela zona, a chuva que teimava em cair e a lentidão com que se deslocavam, ainda mais, agora, com o Nicolau lesionado...
    Ao fundo dois pontos brilhantes começaram a aproximar-se e ganhavam cada vez mais forma, até ao momento em que se visualiza uma carrinha: eram a mãe do Nicolau e os pais do Vítor que os procuravam já fazia algum tempo. 
    Os miúdos não foram capazes de olhá-los nos olhos. 
   O pai do Vítor colocou as duas bicicletas na bagageira da carrinha. A mãe do Nicolau ajudou-o a sentar-se e regressaram em direção à aldeia. 
   O silêncio instalou-se naquele carro. Ouvia-se apenas uma melodia ténue que saia do rádio do automóvel. 
    A carrinha parou defronte da casa do Nicolau. Retirou-se a bicicleta. Despediram-se e mãe e filho entraram em casa. O miúdo coxeava, embora tentasse, a todo o custo, esconder as dores. 
    A mãe mandou-o retirar as roupas molhadas, tomar banho e regressar à cozinha para jantar. Aquela ausência de palavras reprovadoras incomodavam-no. Não sabia o que pensar. 
    Quando regressou à cozinha, encostado à parede para facilitar a sua deslocação, olhou para a mãe e disse, num tom verdadeiramente, sentido: “Desculpa, mãe!”
    Por instantes, a mãe não se moveu, fitou-o e viu as lágrimas que lhe caiam pela face. Dirigiu-se ao Nicolau e abraçou-o. Sentindo o abraço da mãe, apertou os braços à sua volta e chorou ainda mais. Naquele instante, sentiu o peso do mundo nos seus ombros, a inconsciência da sua juventude levara-o a magoar a pessoa mais importante para si, a sua mãe. Nicolau estava triste e com dores, mas aprendera uma lição para a vida: não voltaria a despoletar as lágrimas nos olhos da sua mãe. 




 

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