Um dia
O dia amanhecia solarengo, embora fresco, e prometia um recomeço. Aqueles recomeços que sentimos em cada manhã, em cada despertar, em cada raio de sol que vislumbramos pela janela. Precisamente aqueles raios de luz que nos iluminam o rosto ainda adormecido, quando nos sentamos à mesa para tomar o pequeno-almoço.
Daí a pouco toda a engrenagem se iniciaria, a primeira viagem de carro, deixar o filho na escola, começar mais um dia de trabalho, mais um dia de projetos que voavam nas linhas de cada letra sonante que sairia do rádio naquela manhã. Assim, tudo aconteceu como em todas as outras manhãs em que tudo recomeça.
Olhava com um sorriso, escondido pela máscara, os rostos daqueles que se cruzavam comigo, o que pensariam, o que sentiriam, que vida construíam? Todas as incógnitas que nos assolam, que se encaixam para que o mundo gire e não pare, são pedaços de um todo que não perspetivamos a todo o momento.
Ao perceber essa realidade, sentia uma vontade imensa de partir, de colocar todas as angústias, as dúvidas e os anseios lá, onde não os pudesse encontrar, na terra dos sonhos, daqueles sonhos maus. No entanto, ainda acreditava que existem duas fases na vida, aquela que nos aperta o coração e aquela que nos deixa viver, que nos deixa ser felizes. Tinha que acreditar!
A manhã era longa, sem paragens, como se tivesse simplesmente embarcado num comboio sem apeadeiros. As solicitações eram constantes, as tomadas de decisões inevitáveis; adensava-se a responsabilidade de olhar pelos outros, de fazer a diferença nas suas vidas.
Voltando a olhar por um instante, por uma qualquer janela, voltava a vislumbrar os raios de sol, aqueles que me aqueceram o rosto há poucas horas atrás, e sabia que a vida era diferente vista daqui. A vivacidade daqueles que por ali estavam, a partilha de pequenas aventuras, pequenos segredos, daqueles que sem malícia se encantam com a simplicidade da vida, deixavam-me suspirar de alívio. De repente, o céu carregou-se de nuvens, os raios de sol envergonharam-se e esconderam-se...Mas os minutos continuaram a passar, os números sucederam-se um após o outro na marcha implacável do tempo.
A manhã termina finalmente, escondidos, na passagem do tempo, ficavam os rostos, as palavras, os gestos, os semblantes e uns minutos de solidão.
Mais uma refeição, mais um repousar, mais um avanço no dia.
O céu continuava carregado.
Nova viagem, novo momento que passa e o céu teimava em manter-se cinzento, no entanto, aligeirou-se o momento pelas rugas que marcavam aquele rosto tão familiar, pelo azul dos olhos que tentavam ver-me, mas não sei se o conseguiam, pelas mãos trémulas que tentavam incansavelmente colocar a máscara por cima do nariz.
Maldita máscara! Maldito distanciamento que nos impede de sentir o calor de um abraço, a proximidade de um beijo que ficaria a repousar na face. A conversa desenrola-se como se fosse um novelo, num contínuo processo que rapidamente o tempo acaba por quebrar. Tem que ser assim. Mas porque motivo tem que ser assim?
Novamente os raios de sol, um vento que se torna desagradável, uma conversa que se solta, um conteúdo que se esvai.
A tarde termina pesarosa.
Serão estes devaneios que se adensam e que apagam os sonhos da manhã?
A convergência dos pensamentos começa lentamente a desvanecer-se com a entrada mansinha da escuridão. Um beijo, um aperto no coração, uma promessa de um novo dia, uma pálpebra que cai...assim termina o dia com a esperança de que os sonhos voltem a renascer na manhã seguinte.

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