Percalços de uma vida


Era apenas um rapazito de doze anos. Franzino, de olhos azuis penetrantes e cabelo negro. A escola já terminara há algum tempo. Seu pai tinha falecido quando ele era ainda pequenino, tinha poucas memórias dele, nem tão pouco da sua face se lembrava. Recordava vagamente alguns breves episódios e vivia das memórias que os irmãos mais velhos lhe transmitiam. Ficara a viver numa aldeola remota no meio da floresta com a mãe e os seus três irmãos.   

A pobreza das famílias era flagrante naqueles anos cinquenta, o pós-guerra, fosse ela qual fosse, a mundial, a colonial, fazia com que a vida não fosse abastada, com que os empregos escasseassem, com que a necessidade de sobreviver fosse o lema de todos. Para as mulheres restava pouco mais do que um casamento que providenciasse algum conforto, para os homens a via da emigração, das colónias, ... 

Soledade, a mãe de Manuel, era ainda jovem quando o primeiro marido, pai dos seus quatro filhos, faleceu. Apesar dos mais velhos se terem orientado, arranjando empregos que lhes garantiam a subsistência, o mais novo ficara só na velha casa de pedra quando a mãe arranjou um novo companheiro e se mudou. Manuel ficou, assim, aos onze anos, responsável por manter e preservar a casa da família, as hortas que a circundavam, o pequeno rebanho de quatro cabras e orientar a sua própria alimentação. 

Terminada a escolaridade mínima, na altura até ao terceiro ano de escolaridade, apesar da tenra idade, não lhe restava outra via, à semelhança de tantos outros rapazes da sua idade, do que arranjar trabalho. E assim fez. Conseguiu que um empreiteiro de uma aldeia próxima o contratasse para dar serventia. 

De manhã cedo, colocava um pedaço de pão, que uma das irmãs lhe dera, e duas sardinhas num embrulho, que o acompanharia, e, ainda sob a luz tépida de um novo dia, descia a montanha, subia a encosta seguinte e dirigia-se ao local de trabalho. Quando regressava, ao cair da tarde, acendia a lareira com uns paus secos que recolhera no percurso, colocava a panela de ferro ao lume e esperava que a água fervesse. Aí colocava as couves que cultivara na sua horta e fazia a sopa que lhe confortaria o serão. Por vezes, os irmãos mais velhos, que por ali ficaram e por ali construíram as suas casas, davam-lhe algo mais que tornasse a sua refeição um pouco diferente, mas a vida prosseguia ao mesmo ritmo, dia após dia. 

A certa altura, haveria de falecer o segundo marido da mãe; vendo-se esta sem apoio de familiares diretos seus ou do companheiro, regressou para a sua casa de pedra e voltou a morar com o seu filho adolescente. Este sorriu ao ver regressar a sua mãe.

Naquela época, faziam-se longos percursos a pé, sem cansaço, sem dormência dos sentidos; ia-se trabalhar, ia-se à loja na aldeia mais próxima, ia-se à missa e a vida girava assim em torno de si mesma. Não havia fartura, não existiam luxos; havia o suficiente para comprar bens alimentares modestos, para arranjar um porquinho que se havia de criar, matar e arranjar em partes para que o inverno seguinte fosse um pouco menos sofrido. O frio fazia-se sentir de forma agreste e não poupava ninguém. 

Os anos foram correndo e Manuel tinha agora a idade necessária para ingressar na instrução militar obrigatória, pelo que, não haveria de olhar para trás na altura das despedidas curtas. Esperavam-no largos meses de cumprimento de serviço, eventualmente, o envio para as colónias ultramarinas; não cabia aos jovens decidir, cabia-lhes apenas obedecer.   

Quis a sorte que ficasse colocado no quartel de Elvas e aí ao cuidado particular de um tenente. Rígido no trato, haveria, ainda assim de reconhecer as virtudes e o caráter de Manuel. 

Nessa localidade, acabaria por passar os próximos dois anos da sua vida. Recebia a instrução necessária, cumpria com as tarefas que lhe estavam atribuídas e viu muitos companheiros serem enviados para a guerra. Tal não lhe calhou em sorte! Fora o destino ou uma palavra amiga do seu tenente...não se sabe, o que se sabe foi que Manuel respirou de alívio. 

Terminada esta fase da vida, o jovem Manuel regressou à sua casa de pedra, ao convívio da sua mãe e dos seus familiares. Tinha agora vinte e dois anos e a necessidade de construir a sua própria vida, a sua casa, trilhar o seu caminho. Com hábitos de trabalhos incutidos desde jovem, aventurou-se na ideia de procurar trabalho no estrangeiro, a par do seu irmão e do seu cunhado, pelo que a viagem clandestina até França haveria de ser combinada para dali a pouco tempo. 

Sem documentação que validasse a procura de emprego noutro país, a primeira viagem era encarada como uma verdadeira prova de fogo que levava muitos jovens por entre montes e serras de perigos até ao seu destino final ou, eventualmente, até à cadeia. Todos o sabiam, todos tinham essa consciência, mas a necessidade era real pelo que o medo não podia sobrepor-se. Havia relatos de muitos presos, maltratados em prisões espanholas e devolvidos à precaridade das suas vidas, mas tal não invalidada que, dia após dia, as viagens fossem combinadas.  Faziam-se percursos em carros velhos onde se enfiavam mais passageiros do que aqueles que o veículo deveria transportar, caminhos de terra a pé, subidas de montes às escuras, refeições ligeiras, corridas por entre a bruma da manhã, suores frios que transpiravam nas testas, olhares cúmplices que se trocavam, sussurros que se ouviam, olhos cansados, passos em surdina...que, por fim, alcançaram o destino final. 

Manuel e os companheiros, apesar das dificuldades da viagem, conseguiram alcançar o destino final, tinham chegado a França. Uma vez lá, não havia tempo para descansar. No dia seguinte, começaram a trabalhar nos vastos campos de uvas, na vindima, sob o sol escaldante. À noite, trocava-se meia dúzia de palavras, partilhava-se a refeição que os restantes trabalhadores portugueses ofereciam e descansava-se para, no dia seguinte, recomeçar a lavoura. Era forçosamente um trabalho contínuo, não se estava ali para respirar calmamente, a única pausa servia para lavar a roupa, procurar trabalho que oferecesse um contrato, os tão desejados papéis que permitiriam regressar legalmente a Portugal. Assim acabou por acontecer ao Manuel e a tantos outros. Num país com tanta necessidade de mão de obra na construção civil, não foi difícil arranjar um contrato de trabalho e abrir as portas necessárias a alguma estabilidade. Pôde-se encontrar um alojamento, enviar um dinheirito para ajudar a família em Portugal e marcar uma breve visita no mês de agosto. Para trás, ficava a atribulada viagem que os levara até França e que não se repetiria. Agora, podiam regressar com tranquilidade ao seu país. 

A primeira viagem de regresso pareceu-lhe longa, tais eram as saudades e o desejo de voltar a reencontrar os seus, de voltar a ver as serras que o envolveram durante anos e foi neste reencontro que haveria de voltar para França levando consigo a promessa de um amor, o vislumbre de um começo de vida a dois. Conheceu uma rapariga por quem se enamorou e deixou-a com a promessa de trocarem cartas.

A correspondência fluiu durante meses, criaram-se laços, trocaram-se abraços e combinou-se o casamento que haveria de acontecer daí a meses num gélido mês de janeiro. Tremia a noiva, tremia o noivo, vibravam os convidados e celebrava-se a boda. O pároco unia-os no sagrado matrimónio e a distância do emprego que lhes haveria de construir a casa na aldeia afastou-os durante meses, até que novos papéis fossem feitos, até que Maria pudesse juntar-se, numa viagem sem sobressaltos, ao seu Manuel; até porque o primeiro rebento do casal estava quase a desabrochar. 

Ao fim de alguns meses, nascia a primeira filha, reunia-se a família em terras distantes e vivia-se a harmonia desta estabilidade. Manuel trabalhava arduamente, Maria tomava conta da menina, mas a vida não lhes corria mal: tinham uma casinha primorosamente arranjada, faziam as refeições juntos e conversavam sobre o que o futuro lhes reservaria. 

Não tinham ainda decorrido dois anos e a segunda filha do casal nasceu. Manuel não podia estar mais feliz. Maria disfarçava a sua felicidade sob a capa do cansaço que era cuidar de duas crianças pequenas; no entanto, as alegrias da infância faziam as delícias do casal que resolveu, entretanto, mudar-se para a capital. Um emprego melhor aguardava por Manuel, outras possibilidades levaram-nos a mudarem-se de armas e bagagens. Naquela época era muito comum que a posição de responsável do prédio fosse oferecida a emigrantes portugueses, tal significava receber um parco salário, mas sobretudo alojamento gratuito no apartamento reservado à função, pelo que Maria começou, também, a contribuir para a subsistência da família. 

As meninas frequentavam a escola, o pai saía, de madrugada, para o trabalho levando a sua lancheira, um pouco mais recheada do que há uns anos atrás, e a mãe cuidava do prédio e de mais alguns biscates de limpeza que ia arranjando. Era uma vida de trabalho, mas era uma vida que oferecia mais do que em Portugal. Ainda assim, Manuel sonhava com o dia em que pudesse regressar definitivamente a Portugal. Todos os meses enviava dinheiro para que a sua casa pudesse ser construída e para que, um dia, muito em breve, pudesse regressar à terra que o viu nascer. 

Não demorou muito para que o sonho de Manuel se tornasse realidade, a filha mais nova tinha seis anos, quando voltaram de vez para Portugal, para habitarem a sua casa, para cuidarem dos seus terrenos e adotarem a vida que, no fundo, conheciam desde miúdos, numa terra onde todos eram familiares, onde todos se cumprimentavam e sorriam. Deixavam definitivamente as ruas impessoais de uma cidade repleta de rostos sem nome, de uma cidade sem sol, duma cidade onde não se via o brilho das manhãs de orvalho...o regresso aconteceu no mês de novembro. 

Rapidamente se instalaram, matricularam as filhas na escola da aldeia e deram início à nova etapa das suas vidas. Aos poucos, adotaram os hábitos e costumes daquele lugar: cultivavam os seus vegetais, plantavam as suas árvores, criavam as suas galinhas, os seus coelhos, os seus porcos e as suas cabras. À família juntaram uma cadela e um gato, que faziam as delícias das pequenas. Enfim, estavam aparentemente felizes, no entanto, cedo perceberam que Manuel teria de regressar a França em busca de trabalhos sazonais. Os empregos continuavam precários e a bem de toda a família era preciso que se encontrasse alguma estabilidade financeira; assim, fazendo-se valer dos seus contatos, Manuel voltava a terras francesas durante meses e regressava à família na restante parte do ano. 

Felizmente, a situação não durou demasiado tempo e, passados alguns anos, Manuel arranjou um emprego que lhe permitia manter a família. As filhas, entretanto, cresceram, foram para fora estudar e a pacatez da aldeia tornou-se ainda mais marcante. 

O menino, jovem, adulto vincado pelo sofrimento de uma infância dura, pela necessidade de se fazer à vida envelhecia numa aldeia da Beira Baixa. Rodeado de netos, sorria ao pensar nas aventuras que vivera, nos obstáculos que enfrentara, na força que tivera para não desistir, para seguir em frente. Os seus dias eram agora passados a cuidar dos seus animais, do seu galo Chico, com quem tinha longas conversas matinais, do seu coelho predileto, que o procurava assim que o via chegar. Passava-lhe repetidamente a mão no dorso enquanto lhe sussurrava palavras de afeto. O seu cão castanho seguia-o para todo o lado, tal como a bengala que agora amparava os seus passos. 

Tinha sido feliz, tinha construído a sua vida ultrapassando as suas angústias, os seus medos, o seu sofrimento e tinha, finalmente, a vida serena que sempre desejara. Mirava aquelas serras e vales que se estendiam defronte dos seus olhos azuis escondidos atrás dos óculos que o tempo lhe trouxera. Por momentos fechava os olhos e revia a sua mãe, os seus irmãos já falecidos, o tenente que o acolhera no quartel em Elvas, as suas filhas pequenas, a sua Maria...e assim ficava, e assim vivia cada dia até ao resto dos seus dias. 


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