A introspeção do recomeço
Era cedo. Passavam poucos minutos das sete da manhã, Clara estava estática na plataforma da estação. Um raio de sol batia-lhe levemente na face por onde deslizavam duas lágrimas cristalinas. Clara não se atrevia a virar o rosto, se o fizesse tudo poderia voltar ao ponto de partida...
Fechou os olhos e voltou às suas origens.
Voltou ao olhar profundo com que a sua gata a fitava pela manhã enquanto esperava que Clara se levantasse e lhe fosse colocar na sua tigelinha o seu repasto matinal. Era uma gata paciente, companheira e atenta. Nada lhe escapava, fosse o som do portão da entrada, fosse o suspiro que se soltava em surdina, fossem os passos arrastados que saiam da cama, o que quer que fosse era captado pela perspicácia da gata amiga da Clara. Tinha saudades desses tempos, dos tempos que antecederam a sua partida, a sua inevitável despedida.
Voltou às brincadeiras com os primos. Eram praticamente todos da mesma idade, do mesmo tamanho, mas com personalidades tão diferentes... Ora jogavam às cartas e se armava uma discussão, ora jogavam às escondidas e, sem mais, se zangavam para, daí a pouco, estarem a decidir qual seria a patifaria que se seguiria...enfim, não havia quem os entendesse. Talvez fosse a extrema familiaridade que os levava a agir assim; o que é um facto é que seriam “irmãos” para sempre, ainda que a vida os levasse por caminhos diferentes.
Voltou, ainda, à profundeza dos olhos azuis do seu pai, às rugas das suas mãos, ao calor da sua voz. Como tinha saudades...
Voltou às memórias de quando ele a ajudava a fazer as tarefas da escola ou de quando enchia o peito de orgulho para falar da sua “menina”, mas nada era suficiente para lhe apaziguar a tristeza que carregava no semblante.
Depois das duas primeiras lágrimas, outras tantas se lhe seguiram. O rosto estava húmido. Passavam poucos minutos desde a última vez que olhara para o relógio e verificava que ainda faltava algum tempo até ao seu comboio. Sentada num banco frio e impessoal, voltou a fechar os olhos.
Voltou aos recantos da sua casa, aos espaços onde fora feliz, mas onde tudo se perdera e se desvanecera havia muito tempo. Onde a honestidade se escondera debaixo do tapete, onde o respeito se escoara pelo beirado do telhado, ...onde já nada fazia sentido.
Voltou às tardes de sol em que aproveitava para se sentar no jardim, para ouvir os pássaros, para observar o melro que construía sempre o seu ninho na sebe do quintal. Procurava por ele todas as primaveras enquanto podava as suas flores, enquanto fingia que sabia cuidar de todas aquelas plantas que a rodeavam, enquanto aprendia à força as lições da vida, enquanto acenava com a cabeça e esboçava um sorriso no rosto marcado pela dor.
Voltou à sua juventude, aos momentos em que se sentiu feliz com as suas conquistas, em que deu asas à sua imaginação e voou alto, em que ria com as suas amigas, em que ingenuamente ia descobrindo o mundo à sua volta, em que tentava construir a sua personalidade.
Entrou no comboio. Acomodou-se no seu lugar e agarrou firmemente a sua bolsa, onde guardara as últimas recordações daquela vida. Da vida que lentamente ia deixando ficar atrás do som do comboio que se movia rapidamente para sul. Era para lá que se dirigia. Era lá que iria recomeçar a sua vida. Ainda que o recomeço fosse, naquele momento, uma realidade, a vontade era outra. Ainda que apenas alguns momentos a distanciassem do que fora a sua vida até então, a saudade e o medo tomavam conta de si. Não via quem a rodeava, não ouvia as conversas, os sons, os murmúrios de quem a envolvia naquele comboio. Tudo era um turbilhão de emoções. Tudo se assemelhava a um buraco negro.
Última paragem. Desembarque de todos os passageiros. Mudava de cenário, mas não mudava o desconsolo da sua alma. Um raio de sol teimava em fustigar-lhe o rosto e não a deixava abrir completamente os olhos. Lentamente, dirigiu-se às escadas, a bolsa a tiracolo, arrastava duas malas, puxava atrás de si o que lhe restava. Ainda tinha tempo antes de embarcar novamente. Aquele não era o seu destino final. No bolso do casaco levava o bilhete que comprara dois meses antes.
Voltava às origens. Recomeçava.
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