O meu conto de Natal
Dulce era uma miúda tímida, mas bastante criativa; deixava-se cativar pelas brincadeiras dos seus colegas de escola e alinhava nos jogos do faz de conta. Contrariamente a alguns dos seus amigos, adorava ir à escola, fazer os trabalhos de casa e ler.
De duas em duas semanas, a professora primária (nos anos 80 não se falava ainda em 1ºciclo, as escolas eram conhecidas como as escolas primárias, logo os professores eram igualmente professores primários...) levava-os ao velho armário que estava ao fundo da sala, era neste que estavam guardados os livros já gastos que a criançada levava para casa. Havia aqueles alunos que procuravam levar os livros mais finos, aqueles que procuravam os livros que tivessem muitas ilustrações e pouco texto, mas com a Dulce era o oposto: escolhia os livros que, de certa forma, lhe iriam aquecer o coração, pelo que não olhava ao tamanho, mas sim ao título. Nunca se esqueceu da vez em que levou o livro da Heidi; aquela história fê-la sonhar com todos os pequenos pormenores narrados, com os sentimentos descritos, com a inocência com que a Heidi vivia pois, no fundo, aquela era também a sua inocência. Os livros eram as suas asas, a sua possibilidade de viver outras realidades, tanto assim que sonhou que, um dia, também ela iria escrever contos que fizessem outros sonhar.
A vida na aldeia era calma e rotineira. Situava-se no coração da Beira Baixa e nela moravam pouco mais de 80 habitantes. Para a escola vinham crianças das pequenas aldeias vizinhas e, assim, todas as manhãs todos calcorreavam o caminho que os levava às velhas carteiras da sala de aula. Os Invernos eram rigorosos, pelo que não era fácil enfrentar o frio, a chuva e, por vezes, o gelo para chegar à escola. Confortava-os o leite aquecido no panelão e onde, no intervalo, todos mergulhavam a sua caneca. Alegrava-os a moldagem do presépio, na altura do Natal: arranjava-se barro e, depois, era a disputa para ver quem tinha o privilégio de fazer o menino Jesus. A professora, ciosa do seu presépio escolar, escolhia as melhores mãos e destinava a cada um as suas figuras. Ao menino José calhou-lhe, um dia, fazer uma bola. Uma bola? No presépio? Sim, era a prenda do menino Jesus! A Dulce, como sempre, fazia a figuras centrais e todos participavam na decoração da árvore, no recorte das figuras que se colavam nas janelas e na recolha do musgo. O Natal era sempre uma altura especial e muito esperada por todos; tanto preparativo e tanta expetativa conduzia a criançada às tão esperadas férias de Natal.
Assim que começavam as férias, Dulce fazia os seus trabalhos de casa, depois, dedicava-se à preparação do seu próprio presépio. Não era preciso moldar as figuras, era necessário desembrulhá-las; o seu primo tinha-lhe oferecido um conjunto de figuras que eram religiosamente colocadas todos os Natais debaixo da árvore. Quando passava a época festiva todas as figuras eram cuidadosamente enroladas nos papéis amarelecidos pelo tempo que as aconchegavam até ao próximo Natal. Era como se todos os procedimentos se repetissem ano após ano. O que Dulce menos gostava, naquela altura, era a apanha da azeitona, não porque fosse um trabalho árduo, mas porque estava frio! De manhã, saia com os pais e dirigiam-se ao olival; sob indicação do pai, devia procurar a azeitona que tinha caído ao chão varejada pelo vento e apanhá-la, todas eram necessárias para que se produzisse azeite suficiente para o ano inteiro. Assim passava o dia, com as mãos vermelhas de frio, com os pés gelados e, por vezes, com a roupa meio encharcada.
Dia após dia até à véspera de Natal que era aguardada com especial ansiedade, Dulce ajudava nas tarefas que envolviam toda a família, fosse a apanha da azeitona, fosse cuidar dos animais da quinta ou ajudar a arrumar a casa até chegar o tão aguardado momento: a noite da consoada! O peito enchia-se de um sentimento de serenidade e renovação e era quase como se, no dia seguinte, tudo renascesse.
A ceia da consoada era composta pelo bacalhau com batatas cozidas. Dulce ainda não apreciava assim tanto tal repasto, mas cumpria-se a tradição. Á noite, apagava-se a lareira, Dulce colocava o sapato junto à chaminé onde o Pai Natal o conseguisse ver e ia dormir. Era uma noite diferente, havia uma expetativa no ar, um sonho especial e uma alegria que não se via, sentia-se. De manhã, levantava-se numa correria desenfreada e dirigia-se à cozinha para constatar que o Pai Natal tinha estado na sua casa! Não se esquecera de si! Ali estava a sua prenda, era a sua única prenda de Natal, mas Dulce nunca sentiu necessidade de mais; era como se aquela prenda, aguardada durante doze meses, trouxesse uma magia especial. A prenda era vista e revista, era observada, analisada, adorada. Não se lembrava de uma única prenda de que não tivesse gostado, fosse um brinquedo, uma caneta e até um secador de cabelo laranja! O Pai Natal conhecia-a certamente!
Depois, era necessário despachar-se para irem à missa de Natal. Não havia catequese naquele dia, mas havia a oportunidade de trocar impressões com os seus amigos quanto às prendas que o Pai Natal trouxera a todos. Ainda que alguns achassem que aquele senhor era um pouco injusto, Dulce guardava-o no seu coração, nunca a dececionava.
Hoje, recorda com saudade aqueles Natais passados na aldeia em que a simplicidade e a humildade com que se vivia a data fazia despertar em todos o verdadeiro espírito de Natal. Era um sentimento genuíno que a fazia recordar com ternura aqueles dias passados. Sorria, aconchegada no seu sofá, ao olhar para os cabelos brancos da sua mãe, para o dormitar do seu pai, para o olhar sereno dos seus filhos e, por instantes, tudo voltava à simplicidade da sua infância.

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