Matias

    Matias era um vendedor de comida de rua numa cidade que nunca dormia. Quando o questionavam porque motivo por ali continuava a vender os seus cachorros quentes, porque não procurava empregar-se num restaurante, Matias sorria e dizia apenas que assim podia observar a vida. 

    A vida passava por ele a correr, parava, comprava-lhe algo para comer rapidamente e seguia em passo apressado. Apenas Matias por ali ficava sempre, desde as oito da manhã até às seis da tarde; desde o momento em que servia os seus copos altos de café, os seus galões, os seus chocolates quentes até à altura em que lhe pediam um chá, um saquinho de bolachinhas e pelo meio servia os seus tão apreciados cachorros quentes, que continham um molho especial. Podia dizer-vos que era um molho resultante de uma receita daquelas que passam de geração em geração (seria bem mais poético!), mas, na realidade, Matias era um criativo e na mistura de especiarias descobrira como dar um gosto especial aos seus cachorros. 

    Os cachorros do Matias eram muito apreciados por aquela gente que entrava e saía a correr daqueles prédios repletos de escritórios, de cubículos, de gente que se apinha e se desgasta a olhar para um monitor. Matias gostava de sentir aquela vibração, de os acompanhar, de apreciar as suas roupas de estação, de adivinhar nos seus rostos as suas amarguras, as suas alegrias e os seus anseios. 

    Sabia perfeitamente quando o senhor Andrade discutira com a esposa. Nesse dia, passava pelo Matias, soltava um cumprimento abafado e seguia com um olhar cansado para o seu prédio. Depois, sabia quando o jovem e auspicioso Martins estivera nos copos com os amigos até altas horas da noite. Aparecia-lhe um tanto ou quanto alheado do resto do mundo, por vezes, um pouco desmazelado na indumentária e lá estava o Matias para lhe fazer sinal. O jovem sorria, arranjava-se e continuava alegremente nas nuvens até ao seu edifício. A austera senhora Amélia era a personagem daquele leque imenso que lhe causava calafrios: reservada, de semblante carregado, surgia sempre impecavelmente vestida por um conjunto de saia e casaco. Na mão esquerda levava a sua pasta e com a mão direita agarrava a alça da sua carteira. Religiosamente, às quatro da tarde, saia do seu edifício e pedia a Matias um chá de limão com um pacote de açúcar. Matias já lhe sugerira levar dois pacotinhos (achava ele que assim lhe adoçaria um pouco mais a vida), mas ela gentilmente recusava sempre a oferta. 

    Ao final da tarde, voltava lentamente para casa, guiando o seu carrinho, meticulosamente arrumado. Tinha que fazer três quarteirões, mas o caminho não lhe custava pois sabia o que iria encontrar: a sua querida Margarida que o aguardava com o pequeno Salomão. Viviam num apartamento pequeno, cuidadosamente arranjado e repleto de harmonia. Embora o pequeno negócio lhe corresse bem, a vida na grande cidade era bastante dispendiosa; tanto assim que resolveram que Margarida tomaria conta do pequeno Salomão e faria umas costuras em part-time. O preço a pagar por uma creche era altíssimo! 

    Bem cedo, pela manhã, saia Matias de casa, guiando o carrinho de volta ao seu lugar. Passava rapidamente na loja do senhor Santos e abastecia-se dos ingredientes que lhe fariam falta para as vendas daquele dia. Na noite anterior, preparara os bolinhos que haveriam de acompanhar o café, as bolachas de sésamo que acompanhariam o chá da tarde e revira a lista de compras do dia seguinte. Era uma rotina que partilhava com a sua Margarida quando o pequeno Salomão, por fim, adormecia. 

    Aos fins de semana, os escritórios fechavam-se, desligavam-se as luzes nos cubículos e Matias parava o seu carrinho em frente ao apartamento. 

    As tardes solarengas de sábado e de domingo eram passadas no parque; Margarida e Salomão deliciavam-se a observar os pombos, a partilharem brincadeiras, enquanto Matias armava o seu pequeno banquinho, abria o seu estojo, dispunha as suas caricaturas modelo e aguardava pacientemente que lhe pedissem uma obra sua. 

    Num dia bom, chegava a desenhar seis a sete caricaturas, o que lhe permitia, de vez em quando, a pequena extravagância de levar a família a um restaurante ou ao cinema ou oferecer um ramo de flores à sua Margarida. 

    Matias adorava desenhar e era bom no que fazia, muito embora tivesse a perfeita noção que nunca faria daquela sua paixão a sua profissão, encontrara esta forma de poder partilhá-la com o mundo. Assim, mais uma vez, Matias ajeitava-se no seu cantinho a observar as pessoas, as que passavam languidamente, as que se detinham a observar a sua arte, as que paravam e queriam ser retratadas, enfim todo um conjunto diferente de pessoas que andavam mais devagar.

    A vida, no entanto, não passava devagar. 

    Os anos fluíam e deixavam marcas. 

    Matias manteve-se nos seus cantinhos durante anos, habitou no seu pequeno apartamento com a sua Margarida durante anos e viu crescer o seu Salomão. Ficou feliz quando o seu filho se formou, quando procurou e encontrou emprego num daqueles edifícios que rodeavam o seu carrinho de cachorros quentes, mas ficou apreensivo quando percebeu que o seu Salomão passou a integrar a corrente de gente que passa a correr. 

    No seu pequeno mundo, tão simples e tão pacífico, Matias observava agora o seu filho e questionava-se se seria feliz, se aquele mar de gente que passa e não espera o iria absorver...


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