José

    Sentado junto à janela, as mãos trémulas aconchegadas uma na outra, os olhos azuis por detrás dos óculos viam passar toda uma vida. 
    José passava, agora, os seus dias calmamente sentado no velho cadeirão do seu quarto. A velhice fora chegando sem que ele se apercebesse e, quando deu por isso, as suas pernas começaram a fraquejar, a sua visão a turvar e as suas mãos a tremer. Não estava triste pois fora feliz, tinha realizado sonhos, tinha vivido com honestidade e rodeado por amigos. Acima de tudo, agradecia por nunca se ter sentido a envelhecer; assim, quando as evidências físicas começaram a ganhar contornos, aceitou-as e entendeu que chegara àquela fase da vida em que passaria a agradecer a ajuda dos outros. 
    Ainda se lembrava da sua infância passada na aldeia, dos jogos de bola ao fim da tarde, sob o protesto da mãe, que clamava pela sua ajuda. A resposta era sempre a mesma “Já vou!” e as frases trocadas repetiam-se como se aquele fosse um texto estudado entre dois atores da vida. Mais tarde, acabava por ir, por ajudar no que podia e por fazer, muitas vezes, as tarefas de um adulto. Não se importava, nem tão pouco ficava aborrecido, eram tempos difíceis, era necessário que todos ajudassem e, talvez por ser o mais velho de cinco irmãos, entendesse ainda melhor aquela situação: o pai estava emigrado a maior parte do ano, a mãe tomava conta da casa, dos filhos e das hortas que plantavam. 
    José ajudava sempre que podia. Talvez pela necessidade, ou pelo simples facto de que poucos seguiam estudos, José completou apenas a escolaridade básica e arranjou trabalho, assim passou também a ajudar a sua mãe e os seus irmãos com o seu parco rendimento. Tornou-se aprendiz de carpinteiro e aprendeu a arte do ofício. Gostava do que fazia e passou a saber fazê-lo bem, com mestria e com originalidade. Talvez por isso nunca lhe faltou trabalho e, talvez por isso, também, a certa altura, achou que seria o momento de construir a sua vida. Os seus irmãos estavam a sair de casa aos poucos, o seu pai regressara definitivamente do estrangeiro, arranjara um emprego que lhe permitia viver dignamente e a sua velha mãe preocupava-se, agora, que os seus filhos tivessem a sua família pelo que, sem grandes intromissões, procurava aconselhar cada um deles a serem felizes, tal como ela era com o amor da sua vida. 
    Assim haveria de acontecer e José conheceu alguém. Casou e tiveram uma menina. Explodia de alegria pela filha, pela mulher. Não sabia que se poderia sentir assim ao olhar para aquele pequenino ser frágil que embalava nos seus braços. 
    A primeira vez que a sua mãe o viu com a filha nos braços, chorou de alegria, tal era a emoção de ver o seu José, aquele miúdo, agora homem, ter-se tornado pai. Mas a felicidade não haveria de durar muito, em pouco tempo, os seus pais partiram e José sentiu a dor de perder os seus pilares.  
    Os anos passavam languidamente e a Rosinha crescia airosa e divertida, era a menina dos olhos do seu pai. 
    José tinha-se estabelecido por conta própria e o seu negócio permitia-lhe viver tranquilamente e, acima de tudo, permitia-lhe ser um pai muito presente pelo que era frequente vê-los os dois a passearem os seus cães, a darem um passeio de bicicleta, a jogarem à bola como nos velhos tempos de José. Pareciam duas crianças juntas. 
    A pequena família não aumentou. E, a dada altura, Rosinha partia tal como os irmãos de José haviam feito um dia. Assim, ele ficou só com a sua esposa. Foi como se um pedaço de si se quebrasse e não voltasse a preencher-se. 
    Rosinha voltava sempre que podia, mas José sabia que já não era a mesma coisa. Aquela menina que ele educara tinha-se tornado numa bela mulher que construía, agora, a sua própria vida. 
Valia-lhe a sua arte, as suas belas criações de madeira, os seus trabalhos encomendados, a companhia da sua esposa, os momentos com os amigos, os passeios com os seus cães. A vida é uma passagem, um caminho em direção ao por do sol e, depressa, José se foi apercebendo disso quando os seus amigos começaram a partir e eram cada vez mais frequentes aquelas cerimónias intermináveis. Até ao dia, em que as pessoas se dirigiam a ele para lhe darem as condolências, também a ele. 
Entrou na sua casa só, sentou-se à sua mesa só e deitou-se na sua cama só. Foi, talvez, aí que começou a envelhecer. José já contava mais de setenta anos e começou lentamente a definhar. Não queria ser um encargo para ninguém pelo que, quando a sua mobilidade se reduziu e os seus problemas começaram, resolveu procurar ajuda sob os protestos da sua Rosinha.  
    Encontrara um novo lar, um pouco mais regrado do que estava à espera. Ele que nunca aceitara o poderio de um relógio, que gostava de viver descontraído; agora tinha horas para tudo. Tinha que tomar medicação, tinha que medir a tensão arterial, tinha que ir, regularmente, ao médico; enfim, aquela era a parte menos interessante de todo o processo. No entanto, fizera novas amizades. Encontrara alguém com lucidez para partilhar histórias e emoções e sentava-se calmamente a reviver a sua própria vida. 
    Não estava triste, não culpava ninguém, apenas vivia mais uma fase de uma vida repleta de alegrias, de conquistas, de emoções. E soubera vivê-las, dando valor a si mesmo e a todos quanto o tinham rodeado. Homenageava-os todos, todos os dias, no seu pensamento. 


 

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