Augusto
Nos olhos do Augusto brilhava uma tristeza sem nome, uma mágoa sem destino. Não culpava ninguém, talvez a si mesmo por não ter sabido viver, por não ter sido honesto consigo mesmo, pelas escolhas que não soube fazer.
Agora, olhava em redor e não via nada do que fora a sua vida, enregelava naquele chão frio e agreste, naquele inverno em que estava mergulhado. Por mais roupa que vestisse, sentia frio, respirava o frio e este entranhava-se-lhe nos ossos. Talvez fosse mais ainda por estar ali, sentado, naquela avenida, encostado a uma montra qualquer, tendo por colchão um pedaço de cartão que encontrara junto ao contentor da reciclagem. Junto a si, o seu gato guerreiro.
Encontrara-o, um dia, pequenino, dentro de um caixote de lixo, abandonado a miar. Teve dó do pobre animal. Agarrou-o, encostou-o ao seu peito, dentro do seu casaco xadrez e nunca mais ficou só. O pequeno animal percebeu que alguém o adotara, pelo que foi junto do Augusto que passou a estar e este reconfortou-se com a ideia de ter aquele ser minúsculo consigo. Fê-lo lembrar-se de épocas boas, fê-lo sentir as suas memórias mais agradáveis, da altura em que vivia na aldeia com os seus pais, quando era ainda um petiz que brincava com os cães e puxava o rabo dos gatos. Ele nunca se tinha afeiçoado aos gatos, achava-os demasiado snobs, demasiado confiantes, pelo que se entendeu sempre com o seu amigo Fiel, um cão castanho com uma mancha no peito.
Fiel acompanhava Augusto para onde quer que este fosse, explodia de alegria quando o via chegar da escola e, mais tarde, quando ficou cego, gania sempre que sentia o seu menino a aproximar-se.
São curiosas as voltas que a vida dá, pois, naquele momento, o seu Tigrado (dera-lhe esse nome pois era um gatinho às riscas) era o seu melhor amigo, o seu confidente. Augusto partilhava com ele as suas amarguras, as suas tristezas e as suas ténues alegrias; partilhava com ele a comida que lhe davam. Aliás, o primeiro pedaço era sempre para o Tigrado que se ajeitava no seu colo, ronronando e roçando-se no seu peito.
Certo manhã, quando Augusto acordou não viu o seu Tigrado, foram momentos e horas de aflição pois julgou que se tinha ido embora, ou que alguém o tivesse levado, enfim, que ficaria sem o seu companheiro... estava ele mergulhado nestes sombrios pensamentos, destroçado por dentro, quando ouviu aquele ronronar que lhe era tão familiar e viu aqueles dois olhos brilhantes singelos. Augusto não era uma pessoa expansiva, pelo que apenas lhe rolou uma simples lágrima pela face quando repreendeu gentilmente o seu Tigrado. Por dentro, estava feliz! Procurou na bolsa por uma sobra do seu pão com fiambre e deu-a ao seu gatinho que a aceitou de bom grado. Parecia que este entendia perfeitamente o valor daquelas pequenas ofertas, o sacrifício que, por vezes, o Augusto fazia para que fosse ele a comer. Entendendo ou não, o Tigrado nunca mais o abandonou, nem para dar uma voltinha.
Augusto migrava na cidade. No inverno procurava locais mais abrigados, mais quentes; por vezes deixavam-no ficar na entrada do metro, mas, aí, tinha que esconder o seu Tigrado durante a noite pois os responsáveis não queriam ali animais; se o descobriam, Augusto preferia procurar outro abrigo a ter que abrir mão do seu pequeno gato. No verão procurava locais arejados, onde se pudesse sentir uma brisa que ajudasse a suportar as noites de calor húmido.
Andava pelas ruas há cerca de cinco anos. Fora há cinco anos que a vida o fez tombar, que sentiu a sua vontade a desvanecer-se-lhe por baixo dos pés e percebeu que já não tinha qualquer ambição.
No início, quando, de repente, se viu desalojado, com uma mala na mão, sem dinheiro, sem família, sem amigos, achou que estava a sonhar acordado, que estava simplesmente a vivenciar um pesadelo real, mas, com o passar dos dias, das semanas, dos meses, percebeu que uma realidade diferente se foi construindo a pouco e pouco até não haver mais escapatória, até já não haver outra solução e, foi assim, que o Augusto ficou sem teto.
Foi-se integrando progressivamente, foi percebendo como gerir o seu novo quotidiano, onde dormir, onde passar os seus dias, onde procurar uma refeição quente (e conseguia sempre fazer uma refeição por dia) e, até, onde fazer a sua higiene, que já não era tão regular como costumava ser.
Passou por uma fase negra, por momentos dolorosos, por instantes sufocantes, mas uma palavra amiga, um gesto escondido, um sorriso envergonhado, faziam-no refletir sobre a vida, faziam-no pensar na sobrevivência e foi exatamente o que fez nos primeiros tempos.
Depois, foi uma gestão diária das suas emoções, do conhecimento que ia adquirindo, dos passos que ia dando e um dia nascia depois do outro e Augusto vencia a batalha da depressão, do abandono e do isolamento. Foi quando apareceu o Tigrado na sua vida, foi quando se acendeu uma réstia de esperança e nasceu aquela amizade improvável. Nessa altura, sentiu-se novamente responsável por algo e por si próprio. Que seria do Tigrado se algo lhe acontecesse?
Atualmente, Augusto vivia uma vida simples, despojada de luxos supérfluos, centrada nas reais necessidades do quotidiano. Por onde costumava passar, todos o conheciam: o padeiro que lhe oferecia um pão, o barbeiro que, de vez em quando, o sentava na sua cadeira e lhe rapava o cabelo, a senhora da mercearia que lhe dava umas conservas (para ele e para o Tigrado) e, até, o carteiro que lhe dava sempre um aperto de mão. Todos sabiam do bom coração do Augusto que se mostrava sempre disponível para ajudar, para dar dois dedos de conversa ou simplesmente para acenar e deixar um sorriso.
Cruzamo-nos com tantas histórias de vida, com tantas almas errantes, será que já alguma vez nos cruzámos com o Augusto e com o seu gato Tigrado por aí?

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