Os caminhos da vida
A criançada corria feliz, por aqueles dias, na aldeia. A liberdade que se vivia ali era completamente diferente da vida da cidade. Saiam de manhã, sob o protesto dos avós protetores (Olha o chapéu! Leva o lanche! Cuidado com as brincadeiras!...); não havia conselho que não fosse repetido, tal qual disco riscado, mas, enfim, era isso que se esperava dos avós. Principalmente destes avós que não estavam acostumados a tomar conta dos netos, que apenas os visitavam em alturas de festas ou nas férias de Verão, tal era a distância que os separava na restante parte do ano. Assim, todo o cuidado era pouco, ainda mais quando os pais das crianças não estavam por ali; tinham de trabalhar naquele mês de agosto quente. Enfim, o que é certo é que não seguravam aqueles miúdos muito tempo em casa; eles queriam liberdade e brincadeira. Calcorreavam os caminhos empoeirados que dividiam a floresta, jogavam à bola no campo de futebol cheio de ervas altas, chapinhavam na ribeira que fluía veloz a dois quilómetros da pequena aldeia e corriam atrás dos gatos dos vizinhos. Eram quatro miúdos vivaços e cheios de energia.
Maria e Isabel eram irmãs, mas eram bastante diferentes quer fisicamente, quer em termos de personalidade. Se uma gostava dos seus momentos de leitura, de escrita e de desenho; a outra preferia cantar, ver televisão e conversar muito rápido. A avó não percebia metade da conversa, mas acenava pacientemente com a cabeça deixando a sua neta feliz. O avô não tinha tanta paciência, pelo que nem se dava ao trabalho de fingir, lentamente virava as costas mostrando-se muito atarefado e concordando com tudo o que a neta dizia. Isabel não ficava zangada, simplesmente procurava outro a quem contar as suas histórias, nem que fosse o velho cão pachorrento dos avós, esse estava sempre alegre e disponível; abanava a cauda e entregava-se aos cuidados de quem lhe quisesse fazer festas ouvindo todo o discurso que lhe quisessem impingir. Não obstante, as irmãs, de doze e catorze anos, adoravam partilhar aventuras com os vizinhos da frente, o Tomás e o Tiago. Também eles da mesma idade das miúdas, também eles moravam na cidade, mas adoravam vir instalar-se na casa dos avós quando chegavam as férias. Faziam-no com mais regularidade do que as miúdas, pois os seus pais nem sempre se entendiam quanto ao que fazer com os rapazes, pelo que a solução imediata era sempre a mesma: vão visitar os avós! Obviamente, os rapazes não se importavam, principalmente no verão pois sabiam que teriam a companhia da Maria e da Isabel, poderiam passar o dia fora de casa, percorrer todo aquele espaço verdejante de bicicleta, enfim, tudo o que gostavam de fazer. Embora tivessem muitos amigos dependentes de tecnologia, com eles as coisas não eram bem assim ... gostavam de jogos reais, de conversar, de andar de bicicleta, de tudo o que os obrigasse a mexerem-se. Eram ambos extremamente enérgicos, talvez por isso os pais se cansassem tão rapidamente...
Certa manhã planearam um passeio até à ribeira, levavam as canas de pesca artesanais (o avô Manel pacientemente fizera-as às manas e explicara-lhes como as deviam usar) e os lanches a tiracolo. Os avós eram mais relaxados do que os pais, habituados a serem responsáveis desde cedo, e talvez a não pensarem muito no perigo, que de facto não existia na aldeia, ajudaram-nos a preparar o passeio.
Assim, lá foram os quatro amigos nas suas bicicletas para mais um dia de diversão. Planearam pescar, procurar rãs por entre os juncos, jogarem às cartas (embora o Tiago fosse demasiado ansioso e complicado quando o jogo não lhe corria de feição) e deliciarem-se com os seus saborosos lanches preparados pelas avós (cuidavam sempre das sandes de tal forma para que os meninos não ficassem com fome que o mesmo era dizer que eles levavam sandes de tamanho duplo!).
A água corria límpida e fresca, viam-se os peixinhos mais pequeninos a nadarem por entre os seus pés; a caça à rã tinha-lhes valido umas belas risadas, mas apenas conseguiram apanhar duas, que foram soltas sem quaisquer moléstias, e o dia prosseguia agradavelmente até ao grito de dor de Isabel. Escorregara, caíra desamparada por entre as rochas que tentava atravessar, o pé ficara preso, a miúda contorcia-se com dores...Tomás puxara do telemóvel (que levava em caso de emergência) e ligava já ao avô que acionava de imediato a chamada para a ambulância. Tiago e Maria puxavam devagarinho por Isabel, o pé inchava, as lágrimas caiam-lhe para cara abaixo...
Ao fim da tarde, os pais chegavam à aldeia trazendo Isabel que recolheram no hospital: um pé partido, gesso por algumas semanas e todo o condicionalismo que isso implicava. Maria, Tomás e Tiago rodeavam Isabel que estava já mais calma e esboçava um leve sorriso, um tanto ansioso, um tanto envergonhado. Os pais já lhe tinham feito saber de como estavam desiludidos com os avós pela liberdade que lhes concediam sempre que passavam férias juntos.
No outro dia regressaram à cidade; contrariamente a todas as outras alturas, o nó na garganta apertava um pouco mais, a sensação de que a confiança se quebrara sentia-se no ar e todos se entreolhavam timidamente.
Tomás e Tiago ficaram tristes, já nada era a mesma coisa sem as miúdas; apesar das birras de Isabel e dos gritos de Maria, o facto é que o companheirismo dos quatro amigos tornava os verões muito especiais!
Aquele incidente levou os pais das miúdas a repensarem as férias; não voltaram a enviar as miúdas para a aldeia dos avós sem o seu acompanhamento, que já não acontecia como antes. Viajavam, em família, para outros destinos e para a aldeia. A avó ressentiu-se um pouco, mas, naquela altura ficara tão assustada com o incidente da Isabel que acabou por considerar que seria melhor assim. O avô continuou embrenhado nas suas tarefas, pelo que, quase nem deu por isso.
Anos mais tarde, as irmãs decidiram reviver os seus verões de infância e combinaram passar uma semana na aldeia. Os avós já não moravam lá, a idade e a necessidade de ajuda permanente levara os filhos a procurarem outra solução que os deixasse mais confortáveis, mas a sua casinha branca de janelas verdes ainda lá estava à espera de habitantes, mesmo que fossem apenas temporários...
Os galinheiros estavam vazios, o canil, que outrora albergara os cães do avô, estava empoeirado e solitário, no entanto, voltar àqueles lugares, rever algumas daquelas caras marcadas pelo tempo, fê-las relembrarem-se das alegrias e da honestidade daqueles sítios, fê-las pensar no que teria acontecido aos irmãos vizinhos...é estranho como a vida nos leva por caminhos tão diferentes...mantiveram contacto por uns tempos, mas, aos poucos, perderam-se, cada um na sua vida de agitação, embrenhados nas suas tarefas, nem deram conta dos caminhos que escolhiam. Obviamente que as irmãs se mantinham confidentes e cúmplices, mas as amizades mudaram, os interesses, as conversas...e os rapazes ficaram perdidos na infância dos verões quentes passados na aldeia.
Souberam que o Tomás estudara, formara-se engenheiro e vivia na cidade com a sua família e o Tiago...bem, esse regressara à aldeia. Depois de também se formar, tal como o seu irmão, resolvera criar o seu próprio negócio ali mesmo, dava emprego a quatro ou cinco pessoas e reconstruíra uma casa ao cimo da aldeia, onde habitava com os seus dois cães. Era feliz na simplicidade da vida que outrora o marcara.
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