O Farol

    O sol teimava em querer esconder-se no horizonte quando Silvestre puxou o seu pequeno barco para o banco de areia que ficava ao fundo das rochas encostadas ao farol. Estava na hora da sua tarefa diária; não lhe dava descanso, nem tão pouco cansaço, pois aquela era a sua verdadeira vocação: ser faroleiro. Sentia-se intimamente feliz por poder abraçar aquela missão e guiar tantos e tantos barcos. De vez em quando da capitania mandavam alguém para o substituir, diziam que devia gozar férias...de quê? Não encarava a função de mestre do farol como uma obrigação, ficara muito feliz quando, após testes e provas, o escolheram para ser ele o timoneiro daquele barco, pelo que, por ele, ficaria por ali toda a vida.  

    Certa vez, adoecera, tivera febres altas, tremores, suores e muita fraqueza. Tivera de ficar de cama durante uma semana e foi substituído. O farol não podia ficar às escuras, tinha de brilhar no horizonte e guiar os marinheiros a bom porto. Durante a noite, reunia todas as suas forças, levantava-se da cama e ia colocar-se à janela a olhar para o “seu farol” a brilhar ao longe. Depois, antes que notassem, voltava a deitar-se e adormecia, consolado pela luz que lhe iluminava os sonhos. 

    Apesar dos seus 39 anos, ainda habitava com os seus velhos progenitores. Estes é que não se conformavam com o facto do seu filho único não ter constituído família, não lhes ter dado netos, não ter a sua casinha à beira do penhasco, ao lado da sua...enfim, ainda tinham a esperança...

    Na realidade, Silvestre era um rapaz bem parecido; olhos azuis, cabelos ligeiramente ondulados e loiros, alto, de porte atlético e simpático, mas ainda não se interessara verdadeiramente por ninguém. Tinham surgido algumas raparigas na vida do rapaz, mas Silvestre não levava nenhuma muito a sério; faltava-lhes o mesmo entusiasmo e paixão que lhe consumiam a alma pelo mar, pela neblina e pelo farol. Até então, nenhuma mulher conseguira compreender o que o levava a dedicar-se a uma vida tão solitária, pois Silvestre adorava sentar-se no pequeno varandim, que se situava numa das zonas mais altas do farol, e ficar a olhar o mar, sem emitir qualquer palavra, sem articular qualquer som...

    Todos se lembravam de uma noite em particular, durante um rigoroso inverno, uma noite de tempestade que fustigou toda aquela zona; os ventos rugiam sobre as casas, os barcos, sobre o imponente farol como se estivesse a medir forças com ele. Silvestre acautelou-se dentro do farol de modo a poder garantir que a luz, que guiava todos os que andavam no mar e em terra, não fraquejava especialmente naquelas horas. 
    Por aquelas bandas, de vez em quando, o vento e a chuva ameaçavam todos os que por ali moravam, por ali passavam...faziam sentir-se em toda a sua força e marcavam o território. Até então, apesar das crianças se esconderem sob os cobertores, os mais velhos ficarem a dormitar à lareira e os adultos acautelarem portas e janelas, nunca se tinham registado grandes danos que não pudessem ser reparados; pela manhã, o sol iluminava tudo e todos e voltava a dar esperança e brilho àquela terra. Então, estava na hora de limpar os detritos, retirar algumas árvores caídas, varrer as ruas, escoar as águas que se tinham acumulado, enfim, voltar a dar vida ao quotidiano daquela pequena aldeia pesqueira. Mas, naquela noite em particular, pela manhã, não encontraram apenas folhas e ramos caídos, encontraram pedaços de uma embarcação que todos rapidamente reconheceram...
    -É do barco do Manel! – diziam as mulheres em desespero.
    - Ainda não tinha voltado do mar... –  reconheciam outros, incrédulos.

    Naquela manhã, a dor sobrepôs-se à esperança do recomeço; a guarda costeira foi avisada, os homens percorreram as pequenas praias, espreitaram atrás de cada rocha à procura de respostas. Sabia-se que o Manel era um pescador exímio, acostumado a navegar o seu barco pesqueiro por aquelas águas e que a necessidade de trabalhar era uma constante. Pai de uma família de cinco filhos, o rendimento não era muito, pelo que, ele saía para a pesca sempre que podia, enquanto a mulher cuidava dos filhos, da casa e aceitava trabalhos de costura de forma a poder contribuir para as despesas da casa. A aldeia estava em choque. Não se conformavam com o desaparecimento do seu companheiro e dos seus colegas. Manel tinha gosto em ensinar aqueles que se queriam dedicar à vida no mar, pelo que, com ele, desapareceram outros dois jovens, o Simão e o Tomás, que vinham de aldeias vizinhas aprender com o mestre. 

    As buscas duraram horas, dias e passaram a semanas; o farol buscava de forma incansável por um sinal daqueles homens, mas, ao fim de um par de semanas, a guarda desistiu, os habitantes da aldeia começaram a esmorecer e prepararam-se as cerimónias fúnebres junto ao mar. Silvestre não foi capaz de descer do seu farol, ouvia os cânticos ao longe, sentado no seu varandim e olhava o mar. Reconhecia a sua imponência, a sua força e sabia que Silvestre e os seus companheiros foram por ele acolhidos. 

    Aquele episódio marcou a aldeia, muito embora no passado outros semelhantes tivessem acontecido, nunca tinham envolvido habitantes locais, eram embarcações de recreio, outros barcos pesqueiros que percorriam milhas a tentarem regressar ao seu ponto de origem...mas, daquela vez, o infortúnio bateu-lhes à porta. Uniram-se, ajudaram-se e lentamente começaram a superar a dor da perda.

    Na primavera seguinte, Silvestre encontrou dois meninos à porta do farol, a mirarem-no, a conversarem. Assim que o viram, os meninos abordaram-no e pediram-lhe que os deixasse entrar; queriam muito subir ao farol. Silvestre hesitou.  
    - O meu pai contava-me muitas histórias acerca do farol. Sabe... o mar levou-o há uns meses... 
Silvestre percebeu, então, que aqueles eram os filhos mais novos do Manel; enterneceu-se e levou-os ao interior do farol. Também ele lhes contou histórias do farol, do mar, das ondas, do vento, das gaivotas que cruzavam os céus...e os meninos olhavam-no com entusiasmo e admiração. Voltaram outro dia e outro e outro...enfim, tornaram-se também eles “habitantes” do farol e guardiães das suas histórias, dos seus enredos intrincados. Por vezes, limitavam-se, os três, a olhar a imensidão do mar em silêncio, a observar o por do sol e, aos poucos, já sabiam tudo o que havia para saber acerca do farol. 

    Eugénio, o mais novo, queria ser mestre faroleiro e Vítor queria seguir as pisadas do pai. Ainda faltavam muitos anos para que aqueles pequenos homenzinhos pudessem concretizar as suas ambições, mas, entre os três, estabeleceu-se um pacto de amizade e ajuda. Silvestre orientaria Eugénio, para que ele o pudesse substituir um dia e orientaria a luz do farol para que Vítor pudesse voltar a casa em segurança. Nessa altura, Silvestre sentiu que o farol lhe deu uma pequena família, que o farol lhe completou a vida e que o mar o abençoou. 


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